Bixiga se escreve com T, de teatro

Bruna Sales
6 min readNov 25, 2021

Por Ana Elisa Abddala, Angela Caritá, Bruna Sales e Tiago Tortella

Fachada da sede do Teatro do Incêndio, na esquina das ruas 13 de Maio e Santo Antônio | Foto: Alberto Rocha/Folhapress

Gente de todo jeito, teatros, macarrão, rock, cortiços. O Bixiga é fruto de resistência preta, imigrante e nordestina. A diversidade se orgulha de onde vive e luta diariamente para a cultura não se perder, já que as tentativas são muitas.

O nome ninguém sabe ao certo de onde vem:

— É por conta do comércio de bexigas do matadouro da cidade!

— Meu avô diz que é por conta das vítimas de varíola que vieram se isolar no bairro. Essa doença causa marcas na pele em formato de bexigas, não é?

— Pra mim a versão que mais faz sentido é a da chácara do Antônio Bexiga. Foi dele que os italianos compraram as primeiras terras.

Mas então porque “Bixiga” com “i”? A resposta é o sotaque da italianada, que pega de todo jeito.

Antes da nomenclatura pegar, a região do Bixiga foi um quilombo, chamado Saracura. A história é mais ou menos assim: primeiro vieram os negros, que já se apossaram do lugar como forma de resistência. Lá era um território viável para eles se consolidarem, já que a política de embelezamento da cidade tirou muitos do Centro Velho de São Paulo.

Depois, vieram os italianos, majoritariamente da região da Calábria. Engana-se quem pensa que eram as famílias italianas que conduziram a parte industrial da cidade — esses eram os artesãos, os populares. Posteriormente chegaram os nordestinos. Assim, o Bixiga nascia enquanto região de fissura e insurgência.

O bairro como palco

Das características que diferenciam a região, como o grande número de imigrantes e a diversidade cultural, outra que chama atenção são os teatros. Eles estão por toda parte — são mais de quarenta e cinco — , são tombados pelo Patrimônio Público e destacam-se como centros culturais do bairro.

“Um bairro de imigração italiana ser também um polo artístico não é mera coincidência, a tradição do teatro veio com os imigrantes.”

Cibele Forjaz, professora do departamento de artes cênicas da USP

Fachada do Teatro Brasileiro de Comédia, ou TBC | Foto: Alessandra Haro/Memorial da Resistência de São Paulo

Prova disso é Franco Zampari. O italiano, como só podia ser, foi o responsável pela revolução cultural que moldou o teatro moderno brasileiro em 1922. Foi ele quem fundou o Teatro Brasileiro de Comédia, conhecido como TBC, na rua Dom Diogo, em 1948. Não por acaso, essa rua está localizada no Bixiga. O feito deu vida ao bairro que, naquele momento, virou a Broadway Paulistana.

A região é o berço dos teatros também por conta de sua localização. Próximo ao Marco Zero, o Bixiga fica perto do centro expandido de São Paulo, o que o torna um ponto de atração e, ao mesmo tempo, o deixa longe das áreas mais nobres da cidade. Isso dá brecha para colocar valores mais baixos na bilheteria.

Com esse cenário, a efervescência cultural borbulhava e borbulha, o passado e o presente caminham juntos e a luta pela manutenção da cultura só se dá pela força dessa junção. A história faz parte desse lugar. Ela é construída por ele e o constrói, simultaneamente.

Oficina do território

O Bixiga se faz da cultura. As ruas do bairro são um terreno fértil. Há quase 60 anos o Teatro Oficina, um dos principais da região, se deixa atravessar por tudo que está à sua volta. É quase uma metalinguagem. As peças em cartaz falam do bairro, da história, da ancestralidade, das lutas que lá foram travadas.

Fachada do Teatro Oficina, no número 520 da Rua Jaceguai | Foto: Bruna Sales

O entrelaçamento do Bixiga, de seu espaço físico e imagético, com o Oficina e com sua população é um marco indissociável. Para além da interação com o público, os envolvidos nas apresentações muitas vezes ocupam a rua da frente, uma espécie de apropriação até antropofágica do bairro e da própria via como um lugar de trânsito e história.

“Essa formação de um bairro de insurgência, diverso e que o tempo inteiro questiona a cidade, o modo de vida, o modo de existir economicamente, faz do teatro Oficina o que ele é hoje. Esse teatro não seria o que é se não estivesse localizado no Bixiga. E o Bixiga não seria o que é sem o teatro.”

Marília Piraju Gallmeister, arquiteta cênica do Teatro Oficina

Além das relações sociais, o espaço geográfico e urbanístico são fundamentais para o bairro e para o teatro. Isso preocupa os moradores desde a década de 1960. Foi naqueles anos que o bairro ganhou verdadeiras fissuras urbanas, que dividiram o território habitado e causaram mudanças substanciais na sobrevivência da população. Os espaços públicos e verdes foram ficando para trás das construções viárias.

“O resultado são ruas históricas, com casinhas e sobrados de mais de um século de vida atravessadas por gigantes viadutos de concreto, várias pistas de carros e um fluxo de trânsito carregado.”

AMARAL, Brenda, 2019, p.9

Fachada do Teatro Oficina | Foto: Lina Bo Bardi — São Paulo/SP, 1984

Essas mudanças não param. O medo da cultura do Bixiga se perder em meio aos prédios é gigante. A especulação imobiliária impõe um modo de vida que a população do bairro teme viver. E o teatro também.

Há quarenta e um anos, o terreno em volta do Teatro, onde existe um projeto para construir o Parque do Bixiga, é alvo de briga entre o dramaturgo José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso, diretor do Teatro Oficina Uzyna Uzona, e o Grupo Silvio Santos. Este último, tal qual dita o mercado mobiliário, pretende construir três prédios de até cem metros de altura na região, prejudicando a construção do teatro, que é tombado desde 2010 pelo patrimônio histórico nas esferas federal, estadual e municipal, e daqueles que vivem em seu entorno, dele e por ele.

A arquitetura do Oficina foi criada para ser levada em consideração. A maneira de atuar se relaciona com o que está acontecendo lá fora. Se forem construídas torres gigantescas, se perde o céu, a luz, os pássaros e outros diversos elementos que são cenário e, até mesmo, personagens para o Oficina.

Peça em espetáculo no Teatro Oficina | Foto: Lina Bo Bardi — São Paulo/SP, 1984

No entanto, a questão transpassa o espaço físico e os terrenos, possíveis futuros edifícios que respondem à pressão do capital. Além de se perder o sol da tarde e outros aspectos ambientais que adentram o Oficina, se perderia as interações culturais da população com o espaço. Com a alteração física do lugar, há uma perda da história, já que os espaços que constituem o Bixiga formaram e formam o bairro, as pessoas e a cultura local.

“A especulação imobiliária acaba com culturas, destrói todo um modo de viver de um bairro, mexe com sua população. Querer que a cidade inteira fique parecida com esses lugares que são multi convencionais é afrontar uma maneira de existir.”

Camila Mota, atriz, dramaturga e diretora do Teatro Oficina

O jogo, que foi travado há anos, não pode correr o risco nem de acabar com um empate. Um acordo entre as partes resultaria em grandes perdas. O que cabe, para o teatro e para a movimentação popular em seu nome, é vencer essa partida, para continuar reexisitindo — em ciclo de existências que se afronta com qualquer adversidade. Roda-viva.

“Essa não é uma luta que vai ser resolvida em gabinete. Não é o prefeito que vai assinar. É uma luta que vai vir do movimento popular, dos artistas e de quem luta por ela, como já ocorre há 41 anos.”

Marília Piraju Gallmeister, arquiteta cênica do Teatro Oficina

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Bruna Sales

Paulista, estudante de jornalismo na Faculdade Cásper Líbero.